Auto de fé – Wikipédia, a enciclopédia livre

Pedro Berruguete: São Domingos Presidindo a um auto da fé (1475). Visões artísticas que retratam o tema geralmente apresentam cenas de tortura e de pessoas queimando na fogueira durante os eventos/procedimentos, o que não corresponde á realidade histórica - as penas eram em geral cumpridas noutro local, por vezes noutro dia.

Auto de fé era o ritual de penitência pública de hereges e apóstatas que ocorria quando a Inquisição Espanhola, a Inquisição Portuguesa, a Inquisição mexicana ou outras inquisições decidiam a sua punição, seguida da execução das sentenças pelas autoridades civis. Nos autos de fé, os hereges podiam abandonar a heresia que alegadamente professavam (o que os tornaria "reconciliados" com a Igreja, merecedores de penas leves), continuar fiéis às suas crença ou "crimes" heréticos (eram os "negativos") ou ficar-se por uma confissão julgada incompleta (eram os chamados "diminutos"). Estes dois últimos casos levariam a penas graves, como prisão perpétua, morte pelo garrote ou fogueira.[1]

As punições para os condenados pela Inquisição iam da obrigação de envergar um sambenito (espécie de capa ou tabardo penitencial), passando por ordens de prisão e, finalmente, em jeito de eufemismo, o condenado era relaxado à justiça secular, isto é, entregue aos carrascos da Coroa (poder secular, em oposição ao poder sagrado do clero). O Estado secular procedia às execuções como punição a uma ofensa herética, no seguimento da condenação pelo tribunal religioso. Se os prisioneiros desta categoria continuassem a defender a heresia e a repudiar a Igreja Católica, eram queimados vivos ou garrotados. Contudo, se mostrassem arrependimento e decidissem reconciliar-se com o catolicismo, eram absolvidos.

Os autos de fé decorriam em praças públicas e outros locais muito frequentados, tendo como assistência regular representantes das autoridades eclesiástica e civil. Um auto de fé era uma cerimónia com pompa e circunstância, uma exibição do poderio dos inquisidores.[2] Ao mesmo tempo, uma festa popular, anual e dispendiosa, e o povo que assistia levava petiscos como para um piquenique. [3]

História[editar | editar código-fonte]

O primeiro auto de fé de que há registo foi realizado em Paris em 1242, sob Luís IX[4][5].

A Inquisição portuguesa foi estabelecida em 1536 e durou oficialmente até 1821, se bem que tenha sido muito debilitada com o regime de Marquês de Pombal na segunda metade do século XVIII.

Francisco Rizi, Auto de fe en la plaza Mayor de Madrid. A obra representa um auto de fé celebrado em Madrid em 30 de junho de 1680, durante o reinado de Carlos II de Espanha.

O primeiro auto de fé em Portugal foi em 20 de setembro de 1540, em Lisboa, onde a praça do Rossio servia de local de execução, embora sejam também conhecidos autos no Terreiro do Paço. No Porto houve apenas dois autos de fé, em 1543 e 1544.

Também houve autos de fé no México, no Peru e no Brasil. Há historiadores contemporâneos dos conquistadores (como o guerreiro Bernal Díaz del Castillo) que descrevem alguns casos.

O último auto de fé, após uma condenação pela Inquisição espanhola, envolveu o professor Cayetano Ripoll e decorreu a 26 de julho de 1826. Seu julgamento, sob a acusação de deísmo, durou cerca de dois anos. Morreu pelo garrote, no pelourinho, após dizer as palavras: "Morro reconciliado com Deus e com o Homem".


Na ficção[editar | editar código-fonte]

No livro Memorial do Convento, de José Saramago, cuja ação decorre na primeira metade do século XVIII durante o reinado de D. João V, a personagem Blimunda conhece Baltasar no Rossio, enquanto a sua mãe é julgada num auto de fé, onde é açoitada e degradada.

No romance Goa ou o guardião da aurora de Richard Zimler, cuja ação decorre em Goa, no princípio do século XVII, o narrador e várias outras personagens são humilhados e atormentados num auto de fé.

Na obra Cândido, ou O Otimismo, de Voltaire, o auto de fé também está presente. Cândido e Pangloss são condenados a um auto de fé quando desembarcam em Lisboa, logo após o terremoto.

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. Saraiva, António José (2001). The Marrano Factory: The Portuguese Inquisition and Its New Christians 1536-1765. [S.l.]: Brill. pp. 54,74,101 
  2. Saraiva 2001, p. 100-104, 114.
  3. Novinsky, Anita (1982). A Inquisição. [S.l.]: Editora Brasiliense. pp. 66–68 
  4. Stavans 2005:xxxiv
  5. «Auto De Fe». Jewish Virtual Library. Consultado em 13 de novembro de 2020 

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

  • Arouet, Francois-Marie (Voltaire) (1758). Candide
  • Dedieu, Jean-Pierre (1987) L'Inquisition. Les Editions Fides
  • Kamen, Henry. (1997) The Spanish Inquisition : A Historical Revision. London: Weidenfeld & Nicolson.
  • Lea, Henry Charles (1906–1907). A History of the Inquisition of Spain (4 volumes). New York and London.
  • Monter, William (1990). Frontiers of Heresy. The Spanish Inquisition from the Basque Land to Sicily. Cambridge University Press
  • Novinsky, Anita (1982) - A Inquisição - Editora Brasiliense
  • Perez, Joseph (2006) The Spanish Inquisition: A History, Yale University Press. ISBN 0-300-11982-8, ISBN 978-0-300-11982-4
  • Peters, Edward. (1988) Inquisition. New York: The Free Press.
  • Saraiva, António José. (2001). The Marrano Factory: The Portuguese Inquisition and Its New Christians 1536-1765. -Brill.
  • Stavans, Ilan. (2005) The Schocken Book of Modern Sephardic Literature. Random House, Inc. New York
  • Whitechapel, Simon (2003). Flesh Inferno: Atrocities of Torquemada and the Spanish Inquisition. Creation Books. ISBN 1-84068-105-5

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