Eudaimonia – Wikipédia, a enciclopédia livre

Eudaimonia [1] ou eudemonia,[2][3] (do grego antigo: εὐδαιμονία, transl. eudaimonía, derivado de εὐδαίμων, eudaímon, 'feliz', de εὖ 'bem' + δαίμων, 'daimon', significando "o estado de ser habitado por um daimon do bem") e corresponderia ao conceito de felicidade ou ao estado de plenitude do ser. No entanto, essas traduções têm sido criticadas como imprecisas. Por esse motivo, o termo “eudaimonia” geralmente não é traduzida na literatura especializada sobre a Antiguidade.[4] Muitos lexicógrafos consideram eudemonia e eudemonismo como equivalentes,[5][6] enquanto outros fazem a distinção entre os dois termos, entendendo eudemonia como felicidade ou bem-estar, e eudemonismo como a doutrina moral segundo a qual a busca da felicidade é natural para o Homem, devendo portanto condicionar todas as suas ações[7] [8]

As relações entre virtude de caráter (ethikē aretē) e felicidade (eudaimonia) constituem uma das principais questões da ética, entre os filósofos da Grécia Antiga, havendo muita controvérsia sobre o tema. Em consequência, há também diversas formas de eudemonismo. Dentre essas formas, duas das mais influentes são a de Aristóteles[9] e a dos estoicos. Aristóteles considera a virtude e o seu exercício como o mais importante constituinte da eudaimonia (εὐδαιμονία), mas reconhece também a importância dos bens externos, como a saúde, a riqueza e a beleza. Já os estoicos consideram a virtude como condição necessária e suficiente para a eudaimonia, negando portanto a necessidade de bens externos.[10]

Para os inúmeros pensadores antigos que defendiam uma ética eudemonista, era evidente que o ideal descrito por esse termo era considerado alcançável, em princípio, apesar de ser o árduo caminho para a eudaimonia. Um ideal muito difundido associado a essa meta era a autossuficiência (autarquia, do grego αὐτάρκεια, transl. autárkeia). Buscar uma boa vida não significava esperar que a felicidade viesse de fatores externos, mas encontrá-la dentro de si mesmo, comportando-se de acordo com os princípios da ética filosófica e assim atingindo um estado mental de prefeito equilíbrio. Assim, foram desenvolvidas regras para um modo de vida que permitisse a eudaimonia. Isso envolveu principalmente a internalização de virtudes básicas. Os estoicos apresentaram muitas estratégias práticas para alcançar a eudemonia. "Viver de acordo com a natureza" era uma máxima central no estoicismo.[11] Mas a questão de saber se apenas as virtudes eram suficientes ou se bens físicos e externos também eram necessários era altamente controversa.

O conceito de eudaimonia de Aristóteles foi particularmente influente. Ele foi retomado no final da Idade Média e discutido intensamente. Nos tempos modernos, o antigo ideal tem sido fundamentalmente criticado desde o final do século XVIII. Immanuel Kant considerou-o fundamentalmente inadequado para definir o princípio mais elevado da moralidade. Kant cunhou o termo eudaimonismo para todas as doutrinas éticas nas quais a busca da felicidade - e não o dever - é considerada a razão decisiva para o comportamento moral. O julgamento de Kant teve uma influência forte e duradoura na recepção moderna de conceitos antigos. Entretanto, em discussões mais recentes sobre a filosofia da felicidade, tem havido uma reabilitação, pelo menos parcial, do pensamento antigo, com a abordagem aristotélica, em particular, encontrando ressonância.

A palavra é composta por "eu" ("bem") e "daimon" (divindade inferior, intermediária entre o divino e o humano). Trata-se de um dos conceitos centrais na ética e na filosofia política de Aristóteles, juntamente com areté (geralmente traduzido como 'virtude' ou 'excelência') e phronesis (frequentemente traduzido como 'prudência' ou 'sabedoria prática').[12] Na obra de Aristóteles, a palavra 'eudaimonia' foi usada (com base na tradição grega mais antiga) como equivalente ao supremo bem humano, sendo objetivo da filosofia prática definir o que é esse bem e como pode ser alcançado.

História do conceito

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Entre os antigos gregos e latinos, a palavra, no uso comum, era considerado "feliz" aquele que, por sorte, possuía uma riqueza de bens materiais (em grego, ὄλβιος olbios: afortunado, próspero; em latim, felix) ou aquele que podia desfrutar de um estado de espírito que tornava sereno quem o experimentava (eudaimonia em grego; beatitudo em latim) ou, ainda, aqueles que realizavam seu Daimon, ou seja, seu destino. [13]

Pré-socráticos

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Os poetas antigos e os tragediógrafos acreditavam que era impossível para o homem alcançar a felicidade. Essa concepção persistiu nos filósofos do século V a.C., que negligenciaram o tema da felicidade, tratando-o apenas incidentalmente.

Anaxágoras, a um homem que lhe perguntou quem era feliz, respondeu, exaltando o ideal de uma vida parcimoniosa: "Nenhum daqueles que você considera felizes, mas você o encontrará entre aqueles que considera infelizes."[14] Para Heráclito, mesmo que os homens obtivessem tudo o que desejassem, não seriam felizes.[15] Alberto Magno acrescentou: "Heráclito disse que, se a felicidade residisse nos prazeres do corpo, diríamos que os bois são felizes quando têm grão-de-bico para comer.”[16]

Sofistas e Sócrates

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Górgias revela o segredo de sua longa vida serena ao afirmar que "nunca fiz nada para buscar o prazer".[17] Mas Isócrates ressalta que sua felicidade dependia do fato de que ele "...nunca se casou, não teve filhos e, portanto, estava isento dessa tarefa inútil e incessante."[18]

Para os sofistas, portanto, a felicidade, entendida como tranquilidade material, era a consequência de uma vida confortável dedicada egoisticamente a si mesmo.[19].

Em Sócrates, a eudemonia lembrava a presença do daimon do bem (εὖ δαίμων), o espírito-guia que frequentemente o ajudava em todas as suas decisões. O que o daimon era para Sócrates tem sido interpretado de várias maneiras. De acordo com Paolo De Bernardi, o daimon parecia indicar a natureza autêntica da alma humana, sua autoconsciência redescoberta.[20] Enquanto para Gregory Vlastos o daimōn enviava seus sinais para estimular a razão de Sócrates a fazer a escolha mais adequada[21]. Giovanni Reale, seguindo Vlastos, acredita que o daimōn em Sócrates expressava o mais alto grau de ironia socrática até mesmo na dimensão religiosa[22]. No entanto, os autores concordam que, na concepção socrática, prevalecia o elemento da interioridade referido à eudemonia, ou seja, a felicidade, a serenidade interior era o efeito do comportamento racional direcionado à virtude. Esse é o chamado intelectualismo ético de Sócrates, que argumentava que a única causa possível do mal era a ignorância do bom. "[Eu sei] que cometer injustiça e desobedecer àqueles que são melhores do que nós, deus ou homem, é uma coisa ruim e maligna. Portanto, diante dos males que sei que são males, jamais temerei ou fugirei daqueles que não sei que também são bons."[23] Mas uma vez que o bem era conhecido, não era possível deixar de agir moralmente ao perceber o bem, que era em si mesmo "agradável" na medida em que gerava eudemonia, a serenidade da alma.

O mal, portanto, era praticado porque, por ignorância, era trocado pelo bem, que, no entanto, não podia ser estabelecido a priori de uma vez por todas, mas tinha de ser buscado incessantemente pelo confronto com os outros por meio do diálogo. [24]

Referências

  1. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: eudaimonía
  2. Dicionário Houaiss: 'eudemonia'
  3. Infopédia. «eudemonia | Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa». infopedia.pt - Porto Editora. Consultado em 15 de maio de 2023 
  4. Daniel N. Robinson. (1999). Aristotle's Psychology. ISBN 0-9672066-0-X ISBN 978-0967206608
  5. Infopédia. «eudemonismo | Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa». infopedia.pt - Porto Editora. Consultado em 15 de maio de 2023 
  6. Dicionário Houaiss: 'eudemonismo'
  7. Vocabolario Treccani: eudemonia (em italiano)
  8. Découvrir le français: eudémonie, eudémonisme (em francês)
  9. Verena von Pfetten (4 de setembro de 2008). «5 Things Happy People Do». Huffington Post. Em seu tempo [de Aristóteles], os gregos acreditavam que cada criança, ao nascer, recebia um daemon pessoal que personificava a melhor expressão possível da natureza daquela criança. O daemon era comparado a uma estatueta de ouro que só seria revelada ao se quebrar a camada externa de cerâmica barata que a envolvia (o aspecto exterior da pessoa). 
  10. Jacobs, J.A. (2012). Reason, Religion, and Natural Law: From Plato to Spinoza. [S.l.]: OUP USA. ISBN 9780199767175. LCCN 2012001316 
  11. «Viver de acordo com a natureza – O objetivo estoico de vida» 
  12. Rosalind Hursthouse (18 de julho de 2007). «Virtue Ethics». Stanford Encyclopedia of Philosophy 
  13. Treccani: beatitude (em italiano)
  14. Valerius Maximus, Factorum et dictorum Memorabilium Libri Novem, VII, 2, ext.12 .
  15. John Stobeus, Florilegium, Teubner, Leipzig, 1855-1857, III, I, 176.
  16. Albertus Magnus, De vegetalibus libri VII, Reimer, Berlim, 1867, VI, 401.
  17. Ateneu. I deipnosofisti: dotti a banchetto, Salerno, Roma 2001 XII, 548 c-d.
  18. Isócrates, Antidoses, pp. 155-156.
  19. Nos Memoráveis de Xenofonte, Sócrates ataca o sofista Antifonte, censurando-o por [parecer] alguém que identifica a felicidade com concupiscência (τρυφή, transl. tryphé) e riqueza (I, 6, 10).
  20. Paolo De Bernardi, Socrate, il demone e il risveglio. In Sapienza, vol. 45, ed. Domenicana Italiana, Napoli, 1992, pp. 425-43.
  21. G. Vlastos. Socrate il filosofo dell'ironia complessa, Firenze, La Nuova Italia, 1998 (ed.original: Socrates: Ironist, and Moral Philosopher, 1991).
  22. Giovanni Reale. Socrates. Milão, Rizzoli, 2000.
  23. Platão, "Apologia di Socrate", em G. Cambiano (ed.), Dialoghi filosofici di Platone, U.T.E.T., Turim, 1970, pp. 66-68.
  24. Gabriele Giannantoni, The Philosophical Quest, pp. 87-91.
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