Excepcionalismo americano – Wikipédia, a enciclopédia livre

Acadêmicos afirmam que a Estátua da Liberdade "significa essa missão proselitista como a extensão natural do senso americano de ser uma nação excepcional".[1]

A expressão excepcionalismo americano refere-se à crença segundo a qual os Estados Unidos são um país qualitativamente diferente de outras nações.[2] Constitui uma variante da doutrina do destino manifesto[3] e está relacionado a duas outras crenças. A primeira é a de que a história dos Estados Unidos é essencialmente diferente da história de outras nações.[2] Nessa linha, o excepcionalismo americano decorreria do fato de o país ter surgido a partir de uma revolução (em 1776), tornando-se o que o cientista político Seymour Martin Lipset chamou "a primeira nova nação"[4] e desenvolvendo uma ideologia exclusivamente americana, o "americanismo" - baseada em liberdade, igualitarismo, individualismo, republicanismo, populismo e laissez-faire.[5][6] A segunda é a de que os Estados Unidos têm a missão exclusiva de transformar o mundo. Em análise, desde que existem como povo, os americanos tem cultivado a crença de que o destino marcou seu país como sendo diferente de todos os outros. Nas palavras de Abraham Lincoln, os Estados Unidos são "quase uma nação eleita [por Deus]".[7]

Estudiosos consideram que a crença excepcionalista seja um elemento central da identidade nacional do povo dos Estados Unidos, uma parte fundamental do seu sistema de crenças, contribuindo para o que Benedict Anderson chama comunidade imaginada,[8] e, embora essa crença tenha sido abalada, sobreviveu ao trauma do Vietnã e continuou a influenciar a retórica e a política externa dos governos Ford, Carter, Reagan, Bush e Clinton.[3] :1

No entanto, o tema do excepcionalismo ainda suscita controvérsias entre democratas e conservadores nos Estados Unidos.[9][6] Embora o termo "excepcional" não implique necessariamente a ideia de superioridade, muitos escritores conservadores e neoconservadores têm promovido o uso da expressão "excepcionalismo americano" com este sentido.[10][6][9] Para eles, os Estados Unidos seriam a "cidade edificada sobre uma colina", referida no Sermão da Montanha,[11] e evocada pelo puritano John Winthrop, governador da colônia de Massachusetts Bay, em sermão dirigido aos colonos britânicos a bordo do Arbella, em 1630,[12][13] - ou seja, uma sociedade imune às forças históricas que levaram à corrupção de outras sociedades.[5]

Origem da expressão[editar | editar código-fonte]

A autoria da expressão é geralmente atribuída a Alexis de Tocqueville, que teria sido o primeiro observador consciente do fenômeno. Todavia, nos anos recentes criou-se uma controvérsia quanto a essa atribuição, posto que teria sido fundada em uma frase de Tocqueville, na qual o autor afirma que o povo dos Estados Unidos - país que se tornara independente pouco mais de 60 anos antes - teria uma situação excepcional.[14] Segundo os críticos, deduziu-se uma natureza excepcional a partir da observação de uma situação excepcional (a recente emergência dos Estados Unidos como a primeira democracia moderna), passando-se, diretamente, da excepcionalidade das circunstâncias, para uma espécie de excepcionalidade imanente ao país e seu povo. De fato, Tocqueville utiliza o termo "excepcional" para qualificar o contexto geográfico e histórico dos Estados Unidos mas nunca utiliza a expressão "excepcionalismo americano". Ainda segundo essa crítica, o argumento do excepcionalismo americano teria sido uma invenção, bastante usada nos anos da Guerra Fria, permanecendo após a dissolução da União Soviética.[15]

Uma hipótese mais provável sobre a origem da expressão pode ser encontrada na década de 1920. Em 1929, o líder soviético Joseph Stalin ironizou Jay Lovestone e o Partido Comunista americano em razão de sua crença de que a América era uma exceção à concepção marxista da história "graças a seus recursos naturais, capacidade industrial e ausência de rígidas distinções de classe".[16] Realmente a expressão American exceptionalism aparece no debate sobre a luta de classes nos Estados Unidos, durante o período entreguerras, quando Jay Lovestone, diante da prosperidade americana dos anos 1920 (antes do crash da Bolsa de Nova York) defendia a tese de que existia uma exceção americana: que o capitalismo havia atingido um estado de equilíbrio, nos Estados Unidos, e o proletariado americano não estava interessado em revolução. Tendo em vista o fim da fase de estabilidade em 1927, Stalin zombou dessa tese, pedindo a Lovestone que parasse com aquela "heresia do excepcionalismo americano".[15][17]

Mas o termo "excepcionalismo", aplicado ao povo dos Estados Unidos, já aparecia bem antes disso. Em 1861, a palavra foi usada pelo jornal The Times de Londres, em referência direta aos EUA e à sua auto imagem.[18]

Difusão do uso[editar | editar código-fonte]

A expressão se tornou mais comum durante a Guerra Fria e passou a ser usada tanto por políticos de esquerda, como de direita.[19] Em 1989, o cientista político escocês, Richard Rose, notou que a maioria dos historiadores americanos também acreditava na ideia do excepcionalismo. Ele afirmou que a "América marcha sob uma batida diferente. Sua singularidade deve-se a várias razões: história, tamanho, geografia, instituições políticas e cultura. Explicações do crescimento do governo na Europa não devem caber na experiência americana, e vice-versa".[20]

Assim, a ideia do caráter excepcional dos Estados Unidos e da missão do seu povo, que nasce com John Winthrop, sofre significativas alterações ao longo de quatro séculos, tem sido usada para a justificar uma grande variedade de propósitos, notadamente de política externa[3] - desde a expansão territorial e o idealismo de Woodrow Wilson até a cruzada global contra o "Império do Mal" e a estratégia preemptiva, além de servir como justificativa política para punir oponentes.[13][21]

Atualmente, a ideia é frequentemente empregado por políticos (tanto republicanos, como democratas). Embora seja evocada com mais frequência por conservadores,[22] o próprio presidente Obama, recentemente, referiu-se à crença do excepcionalismo dos EUA e seu povo durante um discurso sobre a Guerra Civil Síria, dizendo que "com esforço e risco modestos, podemos impedir que crianças sejam mortas com gás e, assim, nossas próprias crianças ficariam mais seguras, e eu acredito que devemos agir... É isso o que faz a América diferente. É isso que nos torna excepcionais".[23][24]

Críticas[editar | editar código-fonte]

Acadêmicos contemporâneos rejeitam a ideia de excepcionalismo americano, argumentando que a história dos Estados Unidos não difere da europeia. Em ambos os casos, o desenvolvimento social baseia-se na mesma ideia de desigualdade de classes e raças, além da noção de imperialismo e da disposição para fazer a guerra. Ainda segundo esses acadêmicos, quase todas as nações tem alguma ideia do próprio "excepcionalismo".[25]

Líderes mundiais também criticam tal ideologia. Em uma entrevista para o canal russo RT, em 4 de outubro de 2013, o presidente do Equador, Rafael Correa, criticou as políticas do então líder dos Estados Unidos, Barack Obama, e comparou a noção de excepcionalismo estadunidense à Alemanha Nazista, dizendo:

"Isso não lembra muito a retórica nazista antes e durante a Segunda Guerra Mundial? Eles se consideravam a raça escolhida, a raça superior, etc. Essas ideias e palavras são muito perigosas".[26] O presidente russo, Vladimir Putin, reagindo à fala de Obama, também se manifestou, em setembro de 2013, numa entrevista ao New York Times, dizendo que "é muito perigoso estimular as pessoas a se verem como excepcionais, seja qual for o motivo". Segundo Putin, "somos todos diferentes, mas quando pedimos as bençãos do Senhor, não devemos esquecer que Deus nos criou iguais".[27]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. Winfried Fluck; Donald E. Pease; John Carlos Rowe (2011). Re-Framing the Transnational Turn in American Studies. [S.l.]: UPNE. p. 207 
  2. a b American Exceptionalism: A Double-Edged Sword. Seymour Martin Lipset. New York, N.Y.: W.W. Norton & Co., Inc. 1996, p. ISBN 0-393-03725-8. Página acessada em 8 de julho de 2014.
  3. a b c McCrisken, Trevor B. American Exceptionalism and the Legacy of Vietnam: U.S. Foreign Policy Since 1974. Springer, 2003. 1. American Exceptionalism: An Introduction
  4. Seymour Martin Lipset, The first new nation (1963).
  5. a b Harold Koh, "America's Jekyll-and-Hyde Exceptionalism", in Ignatieff, Michael (ed). American Exceptionalism and Human Rights, p.112. ISBN 0-691-11647-4.
  6. a b c Lipset, American Exceptionalism, pp. 1, 17–19, 165–174, 197
  7. Citação: I shall be most happy indeed if I shall be an humble instrument in the hands of the Almighty, and of this, his almost chosen people, for perpetuating the object of that great struggle. Address to the New Jersey State Senate. Trenton, New Jersey, February 21, 1861. Abraham Lincoln online. Speeches & Writings.
  8. Anderson, Benedict. Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. Verso, 1991.
  9. a b In Defense of American Exceptionalism. Citação: "We know that it is innately human to work, to risk, and to dream. We understand that these virtues, coupled with the conditions American Exceptionalism provides, allow us to enjoy the economic and social mobility that other countries envy. Liberals lament that such success wasn't guaranteed. At its very core, progressivism rejects American Exceptionalism." Por Herman Cain. The American Spectator, 3 de março de 2011.
  10. President Obama and that 'exceptional' thing. Por Kathleen Parker. The Washington Post, 30 de janeiro de 2011.
  11. "Vós sois a luz do mundo; não se pode esconder uma cidade edificada sobre uma colina."
  12. No sermão, intitulado "A Model of Christian Charity", Winthrop explicava que Deus escolhera aquelas poucas pessoas que se dirigiam à América e lhes confiara uma missão. Ademais, Winthrop ressaltava que o mundo os observava. "Thus stands the cause between God and us. We are entered into covenant with Him for this work. We have taken out a commission. [...] For we must consider that we shall be as a city upon a hill. The eyes of all people are upon us." A Model of Christian Charity. Por John Winthrop, 1630.
  13. a b American Exceptionalism at a Crossroads. Por Seongjong Song. The Korean Journal of International Studies, vol. 13-1 (abril de 2015), pp 239-262.
  14. "A situação dos americanos é, portanto, inteiramente excepcional, e é de se crer que nenhum povo democrático nunca será posto nela." In Tocqueville, Alexis de. A Democracia na América (1840). Livro II: Sentimentos e Opiniões. Primeira Parte. Capítulo IX, p. 43. São Paulo: Martins Fontes, 2004
  15. a b MOREAU, Gaëtan. L'"exceptionnalisme"de la politique étrangère américain. Université Pierre-Mendès-France - Grenoble, 2012.
  16. Albert Fried, Communism in America: A History in Documents (1997), p. 7.
  17. How Joseph Stalin Invented 'American Exceptionalism'. Por Terrence McCoy. The Atlantic, 15 de março de 2012.
  18. Zimmer, Ben "Did Stalin Really Coin "American Exceptionalism"?" Por Ben Zimmer. Slate, 27 de setembro de 2013.
  19. Donald E. Pease (2009). The New American Exceptionalism. [S.l.]: University of Minnesota Press. p. 10 
  20. Richard Rose, "How Exceptional is the American Political Economy?" Political Science Quarterly (1989) 104#1 pp 91-115
  21. "We will never maintain wide public support for our foreign policy unless we can relate it to American ideals and to the defense of freedom." (De um memorando do Departamento de Estado, datado de 1981, citado por Robert Pee. In Political Warfare Old and New: The State and Private Groups in the Formation of the National Endowment for Democracy. 49th Parallel nº 22, 2008, pp 22-36.
  22. Schuck, Peter H., Wilson, James Q., Eds. Understanding America: The Anatomy of an Exceptional Nation, 2008, ISBN 978-1-58648-561-0
  23. Karen Tumulty, "American exceptionalism, explained", Washington Post, 12 de setembro de 2013.
  24. The unlikely story behind the phrase 'American exceptionalism'. Por Anthony Zurcher. BBC News, 13 de setembro de 2013.
  25. Noble, David W. Death%20of%20a%20nation%3A%20American%20culture%20and%20the%20end%20of%20exceptionalism%2C&f=false Death of a nation: American culture and the end of exceptionalism, pp. xxiii ff.
  26. «Ecuador's Correa: Obama's exceptionalism talk reminiscent of Nazi rhetoric before WWII». RT. 4 de outubro de 2013. Consultado em 8 de julho de 2014 
  27. "Putin ataca a ideia do 'excepcionalismo' americano", O Estado de S. Paulo, 8 de julho de 2014.

Ligações externas[editar | editar código-fonte]