Inimigo do povo – Wikipédia, a enciclopédia livre

Robespierre costumava usar a expressão contra seus inimigos

A expressão inimigo do povo é uma designação fluida, aplicada, em diferentes contextos históricos, por determinado grupo ou classe social aos seus adversários políticos. A designação implica que os "inimigos" em questão estão agindo contra a sociedade como um todo, sendo similar à noção de "inimigo do Estado".

Origens da expressão[editar | editar código-fonte]

A origem expressão remonta à Roma Antiga e está presente no Direito Romano, na figura do hostis publicus (geralmente traduzida como "inimigo público"), que era o indivíduo que praticava a destruição violenta, sendo, por isso, equiparado ao soldado inimigo, que luta contra a república com armas em mãos. O Senado Romano declarou o Imperador Nero um hostis publicus em 68.[1]

O conceito de inimigo público foi usado na Revolução Francesa na expressão "ennemi du peuple", para descrever os inimigos do regime, durante o Terror. Em 25 de dezembro de 1793, Robespierre declarou: "O governo revolucionário deve ao bom cidadão toda a proteção da nação; ele não deve nada aos inimigos do povo, exceto a morte".[2] A Lei Prairial 22 de 1794 ampliou o mandato do Tribunal Revolucionário para punir "inimigos do povo" com alguns crimes políticos puníveis com a morte, incluindo "espalhar notícias falsas para dividir ou perturbar o povo".[3]

Uso do termo[editar | editar código-fonte]

Estados marxista-leninistas[editar | editar código-fonte]

União Soviética[editar | editar código-fonte]

Já no século XX, a expressão foi incorporada à terminologia soviética[4] e aparece já em 1917, em decreto assinado por Lênin, Trotski e Stalin, entre outros, e publicado em 11 de dezembro daquele ano. O decreto colocava fora da lei o Partido Constitucional Democrata (Kadet), explicitando: [5]

"Os líderes do partido Kadet, partido dos inimigos do povo, devem ser presos e conduzidos ao tribunal revolucionário."

Outros termos semelhantes também foram usados:

  • Inimigo dos trabalhadores
  • Inimigo do proletariado
  • Inimigo de classe

Lênin aplicou essa fórmula contra os kadets e os socialistas revolucionários; Stalin a estendeu aos próprios comunistas. Durante o stalinismo, a luta contra os "inimigos do povo" era considerada como parte da luta de classes, no processo de construção do comunismo, e tinha como alvos os indivíduos considerados contrarrevolucionários, diversionistas, espiões, sabotadores, etc.

Em particular, o termo "inimigo dos trabalhadores" foi formalizado no artigo 58 (Código Penal da RSFSR),[6] e artigos semelhantes nos códigos das outras repúblicas soviéticas.

China[editar | editar código-fonte]

No discurso de Mao Tsé-Tung de 1957 Sobre o correto manejo das contradições entre as pessoas, ele comenta que “No estágio atual, período de construção do socialismo, as classes, estratos e grupos sociais que favorecem, apoiam e trabalham pela causa dos socialistas a construção pertence à categoria do povo, enquanto as forças e grupos sociais que resistem à revolução socialista e são hostis ou sabotam a construção socialista são todos inimigos do povo”.[7]

Albânia[editar | editar código-fonte]

Inimigo do povo (Alb: Armiku i popullit) na Albânia era o tipo de inimigo do regime comunista albanês usado para denunciar oponentes políticos ou de classe. O termo é considerado totalitário, depreciativo e hostil. Ainda existem alguns políticos que usam o termo em adversários políticos com o intuito de desumanizá-los.[8]

Após a aquisição comunista, muitos dos que foram rotulados com este termo foram executados ou presos.[9] Enver Hoxha declarou líderes religiosos, proprietários de terras, funcionários desleais do partido, clérigos e líderes de clãs como "inimigos do povo". Diz-se que isso matou 6000 pessoas.[10] Milhares foram condenados à morte.[11] De 1945 a 1991, cerca de 5000 homens e mulheres foram executados e cerca de 100 000 foram enviados à prisão por serem rotulados de inimigos do povo.[12]

Alemanha nazista[editar | editar código-fonte]

Sobre o plano nazista de realocar todos os judeus para Madagascar, o tablóide nazista Der Stürmer escreveu que "os judeus não querem ir para Madagascar; eles não suportam o clima. Os judeus são pragas e propagam doenças. Em qualquer país onde estejam a estabelecer-se e a espalhar-se, eles produzem os mesmos efeitos que os germes produzem no corpo humano … No passado, pessoas sãs e líderes sãos das aldeias ignoravam os inimigos do povo, eles os faziam expulsar ou matar".[13]

Literatura[editar | editar código-fonte]

O uso da expressão na literatura tem como exemplo mais notório a peça de Henrik Ibsen, "Um Inimigo do Povo", de 1882.

Veja também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. Garzetti, Albino (17 de junho de 2014). From Tiberius to the Antonines (Routledge Revivals): A History of the Roman Empire AD 14-192 (em inglês). [S.l.]: Routledge 
  2. Laponneraye, Alberto (1838). Histoire de la Révolution française: depuis 1789 jusqu'en 1814 (em francês). [S.l.: s.n.] 
  3. Higgins, Andrew (26 de fevereiro de 2017). «Trump Embraces 'Enemy of the People,' a Phrase With a Fraught History (Published 2017)». The New York Times (em inglês). ISSN 0362-4331. Consultado em 16 de novembro de 2020 
  4. Benedikt Sarnov,Our Soviet Newspeak: A Short Encyclopedia of Real Socialism., Moscow: 2002, ISBN 5-85646-059-6 (Наш советский новояз. Маленькая энциклопедия реального социализма.)
  5. (em francês) Rapport secret de Nikita Khrouchtchev (1956). Présenté au XXe Congrès du Parti Communiste de l'Union soviétique. "Ennemi du Peuple" Annotations -14
  6. «Article 58, Criminal Code of the RSFSR (1934)». www.cyberussr.com. Consultado em 16 de novembro de 2020 
  7. «Quotations from Mao Tse Tung — Chapter 4». www.marxists.org. Consultado em 16 de novembro de 2020 
  8. «ENEMIES OF THE PEOPLE, HISTORY, IDEOLOGY BEHIND THE CONCEPT AND THE LONG SHADOW OF THIS CONCEPT» (PDF) 
  9. Elsie, Robert (2013). A Biographical Dictionary of Albanian History (em inglês). [S.l.]: Bloomsbury Academic 
  10. «Gendered legacies of Communist Albania: a paradox of progress». openDemocracy (em inglês). Consultado em 16 de novembro de 2020 
  11. «Enver Hoxha's personality cult lives on in today's Albania». New Eastern Europe - A bimonthly news magazine dedicated to Central and Eastern European affairs (em inglês). 5 de outubro de 2018. Consultado em 16 de novembro de 2020 
  12. «Arct - Denial of Memory: It is Time for Albania to Confront Its Communist Past». www.arct.org. Consultado em 16 de novembro de 2020 
  13. «"The Germ", Leading Article in  "Der Stuermer", September 1938». phdn.org. Consultado em 16 de novembro de 2020