Dar a outra face – Wikipédia, a enciclopédia livre

sermão na montanha

Dar a outra face é uma frase na doutrina cristã do Sermão da Montanha que se refere a responder a violência sem o uso da vingança. Esta passagem é interpretada de várias maneiras como ordenando a não-resistência ou defendendo o pacifismo cristão.

Narrativa bíblica[editar | editar código-fonte]

A frase é apresentada no Evangelho de Mateus como uma alternativa ao "olho por olho", e imediatamente antes do ensinamento de Amar os Inimigos (Mateus 5:43–48):

«Tendes ouvido que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo: Não resistais ao homem mau; mas a qualquer que te dá na face direita, volta-lhe também a outra; ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; e quem te obriga a andar mil passos, vai com ele dois mil. Dá a quem te pede, e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes.» (Mateus 5:38–42)

No Sermão da Planície, no Evangelho de Lucas, a frase é dita após o mandamento de Amar os Inimigos, Jesus disse:

«Digo, porém, a vós que me ouvis: Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei aos que vos maldizem, orai pelos que vos insultam. Ao que te bate numa face, oferece-lhe também a outra; e ao que te tira a capa, não lhe negues a túnica. Dá a todo o que te pede; e ao que tira o que é teu, não lho reclames. Assim como quereis que vos façam os homens, assim fazei vós também a eles.» (Lucas 6:27–31)

Interpretações[editar | editar código-fonte]

Esta frase, assim como muito do Sermão da Montanha, tem sido objeto de interpretações literais e figurativas.

Interpretações diretas[editar | editar código-fonte]

Uma vez que a passagem clama pela não-resistência total, a ponto de "facilitar" a agressão, e como os governos humanos se defendem através da força militar, uma conclusão é o chamado anarquismo cristão, cujo mais famoso defensor foi o novelista russo Leon Tolstoi, autor do livro "O Reino de Deus está Dentro de Você".

Interpretação literal[editar | editar código-fonte]

A interpretação literal da passagem, na qual o mandamento se refere especificamente ao golpe manual contra uma das faces de uma pessoa, pode ser defendida através de referências históricas e outros fatores.[1] No tempo de Jesus, bater em alguém no rosto que se supunha ser de uma classe inferior com as costas da mão era uma forma costumeira de afirmar autoridade e dominância.[2] Se a pessoa agredida "oferecesse a outra face", o agressor seria confrontado com um dilema. A mão esquerda era utilizada para fins impuros, assim um golpe com as costas da mão canhota na face oposta não seria dado.[3] Uma alternativa seria bater com a mão aberta como um desafio ou socar a pessoa, ambos percebidos como um reconhecimento de igualdade. Assim, ao oferecer a outra face, o agredido estava, na realidade, demandando igualdade. Ao oferecer sua capa além da túnica, o devedor estava essencialmente tirando a roupa do corpo, um ato explicitamente proibido pela Lei Mosaica conforme o Deuteronômio:

«Quando fizeres qualquer empréstimo ao teu próximo, não entrarás em sua casa para lhe tirar o penhor. Ficarás do lado de fora, e o homem a quem fizeste o empréstimo, te trará para fora o penhor. Se for homem pobre, não te deitarás no seu penhor; sem falta lhe restituirás o penhor, ao pôr-se o sol, para que durma no seu manto e te abençoe. Isso te será justiça diante de Jeová teu Deus.» (Deuteronômio 24:10–13)

Ao dar ao credor capa além da túnica, o devedor se veria reduzido à nudez, que era vista como fonte de vergonha para quem a contemplava além do próprio, como no caso de Noé:

«Começou Noé a ser lavrador, e plantou uma vinha. Bebendo do vinho, embriagou-se e achou-se nu dentro da sua tenda. Cão, pai de Canaã, viu a nudez de seu pai, e contou a seus dois irmãos que estavam fora. Então tomaram Sem e Jafé uma capa, puseram-na sobre os seus ombros e, andando virados para trás, cobriram a nudez de seu pai; tiveram virados os seus rostos, e não viram a nudez de seu pai.» (Gênesis 9:20–23)

O verso posterior no Sermão da Montanha também pode ser visto como um método para fazer o opressor violar a Lei. A lei romana de Angaria, invocada regularmente, permitia que as autoridades romanas exigissem dos habitantes de territórios ocupados que levassem mensagens e equipamentos a uma distância de até uma milha, mas proibia forçar que se fosse além, sob o risco de sofrer ações disciplinares.[4] Neste exemplo, a interpretação não violenta defende que Jesus estava criticando também uma lei romana, injusta e detestada, além de clarificar seu ensinamento para que ele se estendesse para além da Lei judaica.[5]

Interpretação da conduta pessoal justa[editar | editar código-fonte]

Há uma terceira escola de pensamento sobre esta passagem. Jesus não estava mudando o significado de "olho por olho, dente por dente", mas restaurando o contexto original. Jesus começa sua frase com "Tendes ouvido que foi dito", o que significa que ele estaria esclarecendo um mal-entendido ao invés de "está escrito", que seria uma referência às escrituras. O mal-entendido comum parece ser o de que a população estava utilizado Êxodo 21:24–25 (que contém o guia básico para um magistrado punir criminosos) como justificativa para vinganças pessoais. Neste contexto, o mandamento de "oferecer a outra face" não seria um mandamento que permitiria a alguém que roube ou agrida outrem, mas um mandamento para que o agredido não recorra à vingança.

Exegese[editar | editar código-fonte]

Bíblia de Jerusalém[editar | editar código-fonte]

A Bíblia de Jerusalém comenta a passagem por meio de notas de rodapé e indicações de paralelismo relativas a Mateus 5:38–42, nas quais observa que:

  1. Jesus se refere à Lei de Talião que encontrava-se, por exemplo, nas seguintes passagens do Antigo Testamento: Êxodo 21:24–25, Levítico 24:20 e Deuteronômio 19:21;
  2. a Lei de Talião era mais contida do que a vingança desproporcional de Lameque (Gênesis 4:23–24);
  3. Jesus não proíbe que se ofereça oposição digna às agressões injustas (cf. João 18:22–23 e Atos 23:2–3), nem, muito menos que se combata o mal no mundo;
  4. havia restrições a tomar o manto como penhor: Êxodo 22:25–26 e Deuteronômio 24:12.

Edição Pastoral da Bíblia[editar | editar código-fonte]

A Edição Pastoral da Bíblia comenta a passagem por meio de uma nota de rodapé relativa a Mateus 5:38–42,[6] que diz que:

Como se pode superar a vingança ou até mesmo a justa punição? O Evangelho propõe atitude nova, a fim de eliminar pela raiz o círculo infernal da violência: a resistência ao inimigo não deve ser feita com as mesmas armas usadas por ele, mas através de comportamento que o desarme.

Bíblia do Peregrino[editar | editar código-fonte]

A Bíblia do Peregrino comenta a passagem por meio de notas de rodapé relativas a Mateus 5:38–42 e Lucas 6:29–30, nas quais observa que:

  1. Jesus se refere à Lei de Talião que encontrava-se, por exemplo, nas seguintes passagens do Antigo Testamento: Êxodo 21:24–25, Levítico 24:20 e Deuteronômio 19:21, que era mais contida do que a vingança desproporcional de Lameque (Genêsis 4:23–24);
  2. a mensagem, que ensina a suportar a injustiça contra o corpo e contra as posses, é um um manifesto de não violência.

Tradução Ecumênica da Bíblia[editar | editar código-fonte]

A Tradução Ecumênica da Bíblia, além de indicar a inter-relação com João 18:22, comenta a passagem por meio de notas de rodapé relativas a Mateus 5:40 e Lucas 6:29, as quais observam que:

  1. no Antigo Testamento havia restrições contra a exigência do manto como penhor (cf. Êxodo 22:25–26 e Deuteronômio 24:12–13);
  2. na narrativa feita por Mateus a tomada da peça de roupa é feita em um processo (cobrança de dívidas), enquanto que na narrativa de Lucas a tomada da peça de roupa é feita no âmbito de uma agressão.

Referências

  1. Walter Wink. Engaging the Powers: Discernment and Resistance in a World of Domination. [S.l.: s.n.] 
  2. David Daube. The New Testament and Rabbinic Judaism. [S.l.: s.n.] 
  3. John L. Berquist. Controlling Corporeality. [S.l.: s.n.] 
  4. Th. Mommsen. Codex Theodosianus 8:5:1. [S.l.: s.n.] 
  5. Michael Avi-Yonah. The Jews Under Roman and Byzantine Rule: A Political History of Palestine from the Bar Kokhba War to the Arab Conquest. [S.l.: s.n.] 
  6. EVANGELHO SEGUNDO SÃO MATEUS 5 Arquivado em 12 de março de 2007, no Wayback Machine., acesso em 05 de maio de 2013

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Ligações externas[editar | editar código-fonte]