Soro antiofídico – Wikipédia, a enciclopédia livre

Coleta de veneno para preparo do soro

Soro antiofídico é um medicamento composto por anticorpos usado para tratar picadas de serpentes peçonhentas. É um produto biológico, obtido a partir do plasma hiperimunizados de animais, como cavalos ou ovelhas. Para tal, os animais são inoculados com múltiplas doses de venenos, a fim de criar uma ampla resposta imunológica que produz anticorpos neutralizantes contra vários componentes (toxinas). Está na lista de medicamentos essenciais da OMS.[1]

A administração de soros caracteriza uma imunização passiva, constituindo-se em tratamento antiveneno; portanto, não produz imunidade permanente e, no caso de outro acidente com veneno da mesma espécie de animal peçonhento, é necessário repetir o tratamento antiveneno.[2]

História[editar | editar código-fonte]

O início da terapia antiofídica é geralmente creditado ao médico francês Albert Calmette, em 1895, enquanto trabalhava no Instituto Pasteur da Indochina (que na época era colônia francesa).[3] Calmette desenvolveu um soro para tratar picadas de Naja naja. Na mesma época, Césaire Auguste Phisalix e Gabriel Bertrand também trabalharam em pesquisas sobre envenenamento ofídico, produzindo soro antiofídico no Museu de História Natural de Paris.[3][4]

A descoberta serviu de base para os estudos do médico sanitarista Vital Brazil, pioneiro na produção dos soros específicos contra venenos de animais peçonhentos e reconhecido mundialmente por suas descobertas.[5] Tanto Calmette como Phisalix e Bertrand acreditavam que o soro proposto seria eficiente para qualquer tipo de envenenamento por serpentes.[4] Todavia, em 1898, Vital Brazil demonstrou que a especificidade dos soros antiofídicos estava relacionada ao gênero das serpentes, o que foi um marco para as futuras pesquisas na área.[3][6]

Em 1901, Vital Brazil, como diretor do recém-fundado Instituto Butantan em São Paulo, desenvolveu os primeiros antivenenos monovalentes e polivalentes para os gêneros Crotalus e Bothrops, iniciando a produção e ampla distribuição de soros antiofídicos no Brasil.[7]

Produção[editar | editar código-fonte]

Na primeira etapa do processo de produção de soros são necessárias as serpentes, para a obtenção dos venenos,[8] que serão usados para a hiperimunização de animais doadores, principalmente equinos e ovinos.[8][9] A hiperimunização pode ser feita com o veneno de espécies de um único gênero, dando origem a um soro monovalente, ou a mistura de venenos de espécies de gêneros diferentes, resultando em soros polivalentes.[8]

O animal doador é então inoculado com doses não letais do(s) veneno(s), a fim de se produzir uma resposta de anticorpos neutralizantes. Em seguida, em determinados intervalos, o sangue do animal doador é coletado.[10] Geralmente, o plasma de vários animais é combinado para produzir o plasma acabado, que posteriormente que será purificado para a obtenção do soro.[8]

Regulação[editar | editar código-fonte]

No Brasil, os soros antipeçonhentos são produzidos pelo Instituto Butantan (São Paulo), Fundação Ezequiel Dias (Minas Gerais) e Instituto Vital Brazil (Rio de Janeiro). Toda a produção é comprada pelo Ministério da Saúde, que distribui para todo o país por meio das Secretarias de Estado de Saúde.[11]

No Brasil, os soros hiperimunes são regulamentados pela Anvisa.[12]

Atualmente, muitos poucos países produzem venenos de cobra de qualidade adequada para a fabricação de antídotos, e muitos fabricantes contam com fontes comerciais comuns que nem sempre refletem adequadamente as variações geográficas dos venenos de algumas espécies amplamente distribuídas. Além disso, os países onde as picadas de cobra são um grande problema geralmente carecem de capacidade regulatória para controlar os antídotos e avaliar sua qualidade e adequação.[13]

Classificação[editar | editar código-fonte]

Monovalente vs. polivalente[editar | editar código-fonte]

Um antiofídico pode ser classificado por quais antígenos (venenos) foram usados no processo de produção. Se a imunização for feita utilizando o veneno de espécies de um único gênero, soro é monovalente; o se for realizada por uma mistura de venenos de espécies de dois gêneros diferentes, o soro é polivalente.[8]

Tipo de anticorpo[editar | editar código-fonte]

Os antiofídicos podem ser compostos de moléculas íntegras de imunoglobulina ou por fragmentos de imunoglobulinas.[14] A imunoglobulina íntegra é geralmente a imunoglobulina G (IgG), enquanto os fragmentos são derivados da digestão da IgG em Fab (ligação monomérica) ou F(ab')2 (ligação dimérica).

Os fragmentos de imunoglobulinas são obtidos a partir da digestão por enzimas proteolíticas, como a papaína. Na produção de soros, a papaína converte a IgG íntegra em fragmento Fab (fragmento de ligação ao antígeno) e Fc (fragmento cristalizável, que forma cristais quando armazenado em locais frios).[15] Um anticorpo também pode ser digerido pela pepsina para produzir dois fragmentos: um fragmento F(ab')2 e um fragmento de proteína pFc'.[16]

Propriedades de neutralização cruzada[editar | editar código-fonte]

Os antiofídicos também podem apresentar alguma neutralização cruzada contra uma variedade de venenos de serpentes que não são utilizados durante o processo de imunização,[17] principalmente serpentes da mesma família ou gênero.[18] Entretanto, em determinadas situações, a neutralização cruzada é baixa ou até mesmo inexistente.[17]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências[editar | editar código-fonte]

  1. WHO model list of essential medicines (PDF) 21 ed. Geneva: World Health Organization. 2019. p. 43 
  2. «Manual de Normas e Procedimentos para Vacinação» (PDF). Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Brasília: Ministério da Saúde. 2014: 140–142. ISBN 978-85-334-2164-6 
  3. a b c Bochner, Rosany (8 de junho de 2016). «Paths to the discovery of antivenom serotherapy in France». The Journal of Venomous Animals and Toxins Including Tropical Diseases. ISSN 1678-9199. PMC 4898362Acessível livremente. PMID 27279829. doi:10.1186/s40409-016-0074-7. Consultado em 15 de outubro de 2020 
  4. a b da Cunha, Luis Eduardo Ribeiro (2017). «Soros antiofídicos: história, evolução e futuro». Journal Health NPEPS. 2 (1): 1–4. ISSN 2526-1010 
  5. «Vital Brazil: 150 anos | História, Ciências, Saúde – Manguinhos». Consultado em 15 de outubro de 2020 
  6. Vaz, V. H. da S.; Brazil, O. A. V.; Paixão, A. E. A. (setembro de 2020). «Propriedade intelectual do soro antiofídico: a efetividade a partir da correlação entre os investimentos do governo federal nos principais institutos responsáveis pela produção do soro e realização de pesquisas para o tratamento de acidentes ofídicos no brasil, com relação ao número de vítimas fatais dos acidentes». Cadernos Saúde Coletiva (3): 409–421. ISSN 1414-462X. doi:10.1590/1414-462x202028030018. Consultado em 15 de outubro de 2020 
  7. Bochner, Rosany; Struchiner, Claudio José (fevereiro de 2003). «Epidemiologia dos acidentes ofídicos nos últimos 100 anos no Brasil: uma revisão». Cadernos de Saúde Pública. 19 (1): 07–16. ISSN 0102-311X. doi:10.1590/S0102-311X2003000100002. Consultado em 15 de outubro de 2020 
  8. a b c d e Silva, Filipe Soares Quirino (2008). «Avaliação da pureza de soros antiofídicos Brasileiros e Desenvolvimento de nova metodologia para essa finalidade» (PDF). Rio de Janeiro: INCQS/FIOCRUZ 
  9. Luiz, Marcos Barros (2014). «Produção e caracterização parcial de nanocorpos ativos contra Crotoxina: uma neurotoxina da serpente Crotalus durissus terrificus (PDF). Programa de Pós-Graduação em Biologia Experimental. Porto Velho: Fundação Universidade Federal de Rondônia (Dissertação de Mestrado) 
  10. World Health Organization; WHO Expert Committee on Biological Standardization (2017). Guidelines for the production, control and regulation of snake antivenom immunoglobulins (PDF) (em inglês). Geneva, Suíça: Organização Mundial da Saúde. ISBN 9789240696457. ISSN 0512-3054. OCLC 1055048584 
  11. «Hospital Vital Brazil». butantan.gov.br. Consultado em 15 de outubro de 2020 
  12. «Soro contra picada de animais ganha regra específica». 16 de novembro de 2017 
  13. «Mordeduras de serpientes venenosas». www.who.int (em espanhol). Consultado em 15 de outubro de 2020 
  14. Laustsen, Andreas H.; Gutiérrez, José María; Knudsen, Cecilie; Johansen, Kristoffer H.; Bermúdez-Méndez, Erick; Cerni, Felipe A.; Jürgensen, Jonas A.; Ledsgaard, Line; Martos-Esteban, Andrea; Øhlenschlæger, Mia; Pus, Urska; Andersen, Mikael R.; Lomonte, Bruno; Engmark, Mikael; Pucca, Manuela B. (2018). «Pros and cons of different therapeutic antibody formats for recombinant antivenom development». Toxicon. 146: 151–175. ISSN 0041-0101. doi:10.1016/j.toxicon.2018.03.004 
  15. Amendoeira, Maria Regina Reis; Caputo, Luzia Fátima Gonçalves; Molinaro, Etelcia Moraes; Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (2009). Conceitos e métodos para a formação de profissionais em laboratórios de saúde. Vol. 1 Vol. 1. Rio de Janeiro: EPSJV. ISBN 978-85-98768-41-0. Consultado em 15 de outubro de 2020 
  16. Oxford Reference. «pFc′ fragment». Oxford University Press. Consultado em 15 de outubro de 2020 
  17. a b Noronha, Maria das Dores Nogueira (2008). «Eficácia dos soros antiofídicos de uso veterinário na neutralização das atividades biológicas dos venenos de Bothrops atrox (Linnaeus, 1758) e Crotalus durissus ruruima (Hoge, 1965)» (PDF). Universidade do Estado do Amazonas 
  18. Sánchez, Elda E; Galán, Jacob A; Perez, John C; Rodrı́guez-Acosta, Alexis; Chase, Peter B; Pérez, John C (1 de março de 2003). «The efficacy of two antivenoms against the venom of North American snakes». Toxicon (em inglês) (3): 357–365. ISSN 0041-0101. doi:10.1016/S0041-0101(02)00330-6. Consultado em 15 de outubro de 2020 

Ligações externas[editar | editar código-fonte]

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